Conglomerados econômicos ligados à indústria dos agrotóxicos impulsionam o agronegócio no Brasil sem levar em conta a saúde e outros interesses da população. É o que defende Flavia Londres, engenheira agrônoma formada na USP e integrante da Secretaria Executiva da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Para ela, a produção convencional, largamente instituída nas terras brasileiras, prospera em função das incontáveis concessões do Estado, como demonstrou em seu livro, “Agrotóxicos no Brasil – um guia para a ação em defesa da vida”, publicado em 2011.
Como dirigente da ANA, Flavia Londres faz parte de um espaço de articulação e convergência entre movimentos, redes e organizações da sociedade civil brasileira engajadas na promoção da agroecologia. Segundo ela, existe um lobby grande na Câmara dos Deputados e do Senado, além do Poder Executivo, para manter intacto o sistema do agronegócio.
As concessões do Estado hoje somam R$ 10 bilhões por ano, segundo estudo recente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), feito por pesquisadores da Fiocruz e da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
- A política de Estado que incentiva esse modelo coloca a população e o meio ambiente do Brasil em grandes riscos, porque incentiva o aumento da quantidade e dos tipos de agrotóxicos utilizados, explicou Flavia.
De acordo com a engenheira agrônoma, os mais afetados são os trabalhadores que manipulam os defensivos, tanto no campo, quanto na indústria, seguidos por uma cadeia que chega até o consumidor com alimentos cada vez mais contaminados.
“Se os agrotóxicos não matam, causam anomalias”, advertiu a diretora do Laboratório de Toxinologia Aplicada do Instituo Butantã, Mônica Lopes Ferreira, em entrevista ao jornal “O Estado de S.Paulo”, em agosto de 2019. A imunologista conduziu uma análise encomendada, no anterior, pela Fiocruz, que pertence ao Ministério da Saúde. Por meio de uma metodologia que é referência mundial para testar a presença de toxinas na água, os pesquisadores do Butantã analisaram os 10 agrotóxicos mais utilizados na agricultura brasileira. A conclusão do estudo aponta que mesmo um trigésimo do uso de pesticidas recomendado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não pode ser considerado seguro. Pelo contrário, os responsáveis afirmam que os componentes são extremamente tóxicos ao meio ambiente e à vida em qualquer concentração.
Ainda no âmbito da saúde, o marco regulatório publicado pela Anvisa, em julho de 2019, retirou 600 produtos da classificação de extremamente tóxicos. Organizações como o Greenpeace entendem a mudança como um afrouxamento, pois só serão classificados como extremamente tóxicos os agrotóxicos que representam risco à vida. Dessa maneira, a classificação reflete apenas a toxicidade aguda e não indica o risco de doenças de evolução prolongada, como o câncer, neuropatias ou doenças crônicas não transmissíveis.
No espectro político, Flavia Londres entende que o agronegócio sempre teve grande influência no governo brasileiro e percebe o agravamento desse cenário, nos últimos anos, com o enfraquecimento de espaços de democracia participativa e o desmonte de órgãos como a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo), que tinha participação paritária da sociedade civil, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf). O resultado é um aumento exponencial do número de agrotóxicos liberados e utilizados.
Assim, entende-se que o diálogo entre a sociedade civil organizada, com suas demandas, e o poder público é um elemento essencial para a consolidação de denúncias e propostas no âmbito político. Dessa maneira, a obstrução desses canais prejudica significativamente o exercício pleno de cidadania e participação democrática da população, meios crucias de reivindicação de interesses e necessidades no âmbito da alimentação.
A curva de crescimento do número de agrotóxicos aprovados pelo governo federal ao longo dos anos demonstra esse cenário. Em 2019, o governo federal aprovou um número recorde de novos defensivos agrícolas: 475, dos quais, mais de 23% foram classificados como extremamente tóxicos pela Anvisa. E o ano de 2020 acompanha o ritmo de aprovações, com 150 até o mês de maio.
A política de Estado que promove o modelo convencional foi instituída no Brasil em meados da década de 1960, alinhada ao movimento mundial conhecido como “revolução verde”. A mobilização dos governos visava promover a agricultura na busca por combater a fome. Mas nesse caminho, o plano foi aplicado pela imposição das indústrias de agrotóxicos e pelo governo brasileiro: o financiamento bancário para compra das sementes só era dado pela compra simultânea de adubo e de agrotóxico.
Nesse contexto, é importante lembrar que o mercado desses produtos é caracterizado por uma alta concentração, onde 13 empresas multinacionais controlam cerca de 90% do mercado mundial. O número consta em artigo publicado, em 2016, por professores da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Sob essa perspectiva, fusões bilionárias recentes acentuaram esse cenário, como a compra da gigante americana Monsanto pela alemã Bayer por 63 bilhões de dólares. A partir da transação ocorrida em 2018, a Bayer se tornou a maior corporação agrícola com um terço do mercado global de sementes comerciais e um quarto do mercado de agrotóxicos. A empresa ainda atua na área de medicamentos em escala global.
NA OUTRA PONTA, A AGROECOLOGIA
Em contraponto ao modelo hegemônico e largamente estabelecido no país, estão as hortas agroecológicas urbanas que se multiplicaram nos últimos anos. Estudo realizado pela "Worldwatch Institute" aponta que já em 2011, os produtos da agricultura urbana representavam 15 a 20% de todo o alimento produzido no mundo.
Flavio Lazarino é responsável pela implementação da Horta e Pomar Amaravista, em Niterói. O designer e artista largou a carreira em grandes corporações de tecnologia e moda para contribuir com a sua comunidade. A horta comunitária se estabeleceu pela ocupação de um terreno antes dominado por grileiros de terra que degradaram o local ao aterrar parte da lagoa com entulhos e lixo. O agricultor explica que o projeto preza pela vida e pela capacidade de a natureza se regenerar sozinha.
- Lá a gente visa coletivizar o processo de aprendizagem e de cuidado com o espaço através de uma ocupação social que traz vida à praça e faz com que as pessoas entendam que é preciso cuidar das áreas e não simplesmente esperar que o município resolva as coisas.
Quanto ao uso de agrotóxicos, Lazarino admite que prefere não trazê-los para a discussão com os voluntários pela possibilidade de afastar alguns por divergências políticas. No entanto, acredita que é possível tocar as pessoas e gerar uma microrrevolução não pela crítica direta aos agrotóxicos e aos seus prejuízos, mas ao demonstrar, na prática, as vantagens e benefícios de uma plantação natural, de alimentos frescos e nutritivos. Ele conclui que as pessoas que cooperam na iniciativa tiram todas essas conclusões sozinhas, porque percebem a diferença, no sabor e na aparência, entre as frutas e verduras plantadas localmente daquelas que são adquiridas nos supermercados.
No mesmo caminho, porém com outras estratégias e meios de enfrentar o consumo desregrado de agrotóxicos, está Marcos José de Abreu. O vereador de Florianópolis (PSOL), mais conhecido como Marquito, foi responsável por propor a lei que determinou que Florianópolis se tornasse uma Zona Livre de Agrotóxicos em outubro de 2019. Após cerca de 18 meses de tramitação, a lei foi aprovada por unanimidade na Câmara Municipal. A legislação torna crime aplicar ou armazenar os insumos químicos na capital catarinense.
Em depoimento, Marquito explica que a aprovação da lei foi uma grande vitória, um marco muito significativo, pois constituiu uma medida inédita em um país apontado por ele como maior consumidor monetário de agrotóxicos do mundo. Mas para isso, o vereador conta que a lei não veio sozinha e a construção dessa consciência ecológica, tanto por parte da população, quanto de seus colegas parlamentares, decorreu de definições anteriores. Ele se refere às duas leis aprovadas em abril de 2019: a Política Municipal de Agroecologia e Produção Orgânica em Florianópolis, uma lei com características de agricultura ecológica urbana e rural, e a lei que institui a obrigatoriedade da reciclagem dos resíduos orgânicos no município, a lei da compostagem.
O modelo de monocultura do agronegócio, muito semelhante ao "plantation" colonial, como destaca o agrônomo Augusto Santiago, conta com propriedades que chegam a mais de 10 mil hectares. De modo que esse modelo produtivo está também assentado sobre um problema crônico do país: a má distribuição de terras que produz um alto índice de concentração das áreas agricultáveis em poucos estabelecimentos. Tal situação se torna evidente com base em dados do Censo Agropecuário de 2017 que demonstram que mais de 58% da área ocupada é composta por apenas 2% dos estabelecimentos. Essa minoria que concentra mais da metade dos terrenos são as pouco mais de 105 mil propriedades que tem áreas de 500 a mais de 10 mil hectares (entre 5 a mais de 100 quilômetros quadrados).
O VALOR DO PRODUTOR RURAL
Apesar das críticas que podem ser levantadas contra esse modelo hegemônico de produção, Roberta Pereira, representante do Sindicato dos Produtores Rurais de Redenção, no sul do Pará, destaca que é ele quem sustenta uma parcela importante do PIB do país, e inclusive, permanece em plena atividade em momentos de crise como o da pandemia do novo coronavírus. Dessa maneira, ela entende que é preciso valorizar o trabalho do pequeno agricultor e da população rural que trabalha com afinco e sob as diretrizes da lei para produzir alimento de qualidade aos que moram na cidade.
Formada em zootecnia, a produtora rural explica ainda que o que se trabalha hoje é uma agricultura intensiva, com aplicação de tecnologia sempre junto com os princípios agroecológicos.
- Pode ter certeza que todo produtor tem interesse em preservar e zelar pelo meio ambiente, porque a gente precisa da água limpa e do solo em condições boas, com alto teor de sais minerais, senão a planta não cresce, adiciona Roberta.
A representante dos produtores rurais declara que eles não utilizam nada que não seja aprovado pelo Ministério da Agricultura. E que se existe produto irregular no mercado, o produtor correto não utiliza essas práticas ilegais, inclusive, pelas multas que recaem sobre esses delitos.
- Aqui na região amazônica, 80% é Área de Preservação Ambiental, então é lei. Eu tenho que ter no Cadastro Ambiental Rural, 80% da propriedade preservada. E quanto aos agrotóxicos, são utilizados apenas quando a plantação corre riscos, porque na maior parte do tempo, o cultivo está em equilíbrio com o ambiente.
Nesse sentido, ela afirma que a aplicação dos defensivos não é feita de forma desregrada ou impensada, justo pelo risco de contaminação do solo e do lençol freático e, inclusive, pelos altos preços dos defensivos agrícolas. Roberta conta que as isenções bilionárias concedidas pelo Estado ocorrem entre a indústria e o governo e não beneficiam o produtor.
- O produtor rural sempre paga a conta mais alta. É muito caro produzir alimento e, mesmo assim, a gente não desiste, completa Roberta.